sexta-feira, outubro 26, 2007

:: Drenagem # ::


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:: Drenagem #1 ::

Não sei como dizer disto que me acontece, desta explosão de saudade insaciável, que me chega como escada de pau encostada a um muro que não termina. o que é curioso é que nunca fui criança de vindimas, de brincadeiras na terra preta, de subidas aos muros para roubar laranjas, joelhos esmurrados dos jogos-de-berlindes, nem sequer de histórias contadas pelo avô, biscoitos feitos pela avó. Isso nunca tive.
Nunca uma só vez fiz o caminho de casa de bicicleta, nem me apercebi que eram plátanos que ladeavam os meus passos incertos. acredito que nascem inseguras as crianças do Outono ; tristes e amedrontadas, talvez por nascerem próximas já dessa evidência da morte que é a nudez abandonada das árvores.
O peito enche-se-me de uma aflição irreconhecível, é certo apenas que Novembro está próximo e que terei novamente que aprender a caminhar pelas ruas debaixo de chuva, com as mãos perdidas pelos bolsos.
Tateio as palavras e avoluma-se o engano do que não fui. cresci emparedado pelos labirintos do medo. Fiz-me pedra, fiz-me fonte, fiz-me sombra.
Alheio às buganvílias, às magnólias, às heras que crescem como cabelos pelas paredes e pelas colunas. tive apenas o perfume das madressilvas, a doçura das amoras pretas, os domingos para ir buscar água à fonte.
Agora acontece apetecer-me o conforto do que passou, um lugar à mesa onde houvesse figos, pão e mel, e romãs como as de outrora, mas o que é incontornável são os lugares que restam vazios, e a certeza de que à mesa falta gente, ou falto eu, a tempo de crescer acreditando que o Verão também existe para recompor as almas do suplício da melancolia.
Tenho os gatos, tenho os cadernos de linhas, tenho acima de tudo esta visão sobre o deserto que é o lugar vasto que trago sob a pele, e assim caminho com uma mão aqui, outra ali, titubeando a natureza das feridas com estes equívocos que são os sonhos.
Arde-me por dentro o que até aqui foi o meu corpo, agora encolhido como se procurasse que os braços voltassem a ser pequenos e a oferecer apenas abraços raros, e não sei de fato dizer desta ânsia de um inverno que dure um pouco mais, que me deixe acomodar-me enrolado nas mantas de lã em roda do papel de embrulho rasgado apenas o tempo de esquecer-me que, regressando o verão, faltarás tu.

:: drenagem #2 ::

Hoje vou arrancar as fotografias uma a uma, da mesma forma que os nomes na lista telefônica se misturam em amigos indiferenciados. um outro dia, reunirei os objetos .
E um a um arrumá-los-ei em caixas. Organizar o espaço em volta é a segurança de organizar o espaço em falta [por dentro].
A pouco e pouco, aniquilarei os vestígios desta persistente presença. e não porque o tempo não permita o sossego da convivência, mas porque é chegado o tempo de morrer como morrem as folhas no Outono, e de vagar o espaço para que algo novo venha e dele se ocupe. é tempo de salgar as feridas e queimar a terra. porque chão que arde é chão tornado fértil, e certeza que algum fruto dele nascerá.

by : Saturnine

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