quinta-feira, junho 16, 2005

"spleen" __ BAUDELAIRE

(Charles Baudelaire )

Amigo, amiga,
Você abre um livro de poesia e, logo no início, num poema chamado "Ao Leitor", o autor avisa: "Na almofada do mal é Satã Trismegisto/ Quem docemente nosso espírito consola". Para não deixar dúvida, mais adiante ele reafirma: "É o Diabo que nos move e até nos manuseia!"
Não, não adianta fingir que não é com você. O poeta assegura que você sabe do que ele está falando, e termina mandando mordazes e cordiais saudações: "Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!"
Claro, você já adivinhou: o livro é Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal) e o poeta, o francês Charles Baudelaire. Continue a folhear. O tom é sombrio. São textos cheios de tédio, morte, sepultura, melancolia, volúpia, luxúria, vermes, serpentes, maldições e até uma "ladainha ".
Não se assuste...!!!

Religioso a seu modo, , Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867) é considerado o pai do simbolismo francês.

Spleen (LXXV)


Pluviôse, contra toda a cidade irritado,De sua urna verte um frio tenebrosoSobre os que moram sós no cemitério ao lado,E entorna a morte no subúrbio nebuloso.
Meu gato em busca de onde estar aconchegadoAgita inquieto o corpo flácido e asqueroso;A alma de um velho poeta erra pelo telhado,Com lúgubre voz de um fantasma brumoso.
O bordão se lamenta, e a tíbia acha de lenhaAcompanha em falsete a pêndula roufenha,Enquanto num baralho, entre ácidos odores,
Herança de uma velha hidrópica e entrevada,Um valete e uma dama, em sinistra jogada,Vão lembrando entre si seus defuntos amores.

Spleen (LXXVI)


Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,Versos, cartas de amor, romances, escrituras,com grossos cachos de cabelo entre as faturas,Guarda menos segredos que o meu coração.É uma pirâmide, um fantástico porão,E jazigo não há que mais mortos possua.- Eu sou um cemitério odiado pela lua,Onde, como remorsos, vermes atrevidosAndam sempre a irritar meus mortos mais queridos.Sou como um camarim onde há rosas fanadas,Em meio a um turbilhão de modas já passadas,Onde os tristres pastéis de um Boucher desbotadoAinda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,Quando, sob o rigor das brancas invernias,O tédio, taciturno exílio da vontade,Assume as proporções da própria eternidade.- Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!Um granito açoitado por ondas de assombro,A dormir nos confins de um Saara brumoso;Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,Esquecida no mapa, e cujo áspero humorCanta apenas aos raios do sol a se pôr.

Spleen (LXXVII)


Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,Que, desprezando do vassalo a cortesia,Entre seus cães e os outros bichos se entedia.Nada o pode alegrar, nem caça, nem falção,Nem seu povo a morrer defronte do balcão.Do jogral favorito a estrofe irreverenteNão mais desfranze o cenho deste cruel doente.Em tumba se transforma o seu florido leito,E as aias, que acham todo príncipe perfeito,Não sabem mais que traje erótico vestirPara fazer este esqueleto enfim sorrir.O sábio que ouro lhe fabrica desconheceComo extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,De que se lembram na velhice os soberanos,Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,Em vez de sangue flui a verde água do Letes.

Spleen (LXXVIII)


Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampaSobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,E, ungindo toda a curva do horizonte, estampaUm dia mais escuro e triste do que as noites;
Quando a terra se torna em calabouço horrendo,Onde a Esperança, qual morcego espavorido,As asas tímidas nos muros vai batendoE a cabeça roçando o teto apodrecido;
Os sinos dobram, de repente, furibundosE lançam contra o céu um uivo horripilante,Como os espíritos sem pátria e vagabundosQue se põem a gemer com vez recalcitrante.
- Sem música ou tambor, desfila lentamenteEm minha alma uma esguia e fúnebre carreta;Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,Enterra-me no crânio uma bandeira preta

Glossário: Letes: um dos rios do inferno. Sua água fazia esquecer o passado àqueles que dela
bebessem
Pluviôse: é o mês das chuvas segundo o calendário adotado durante a Revolução Francesa
François Boucher: pintor e gravador francês.