QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU?
Por Renato Roschel08/09/2002
Por Renato Roschel08/09/2002
Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia. - Para a casa de vovó; ela respondeu. - Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulha? - O das agulhas. Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera.
Pam, pam.
- Entre, querida. - Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite. - Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: "menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!"
Então, o lobo disse: - Tire a roupa e deite-se na cama comigo. - Onde ponho meu avental? - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
Para cada peça de roupa corpete, saia, anágua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia: - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.
Quando a menina se deitou na cama, disse: - Ah, vovó! Como você é peluda! - É para me manter mais aquecida, querida. - Ah, vovó! Que ombros largos você tem! - É para carregar melhor a lenha, querida - Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas! - É para me coçar melhor, querida! - Ah, vovó! Que dentes grandes você tem! - É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou.
Pode até parecer estranha, mas esta é uma versão camponesa, que acredita-se ser a primeira versão da fábula Chapeuzinho Vermelho, da França do século XVIII, compilada em O Grande Massacre de Gatos (e Outros Episódios da História Cultural Francesa) de Robert Darnton. Mas o que esta fábula possui de estranho? É certo que essa versão carrega algo que a difere da versão mais conhecida e atual, mas não é só o que percebemos. Há hoje um grande interesse da sociedade de consumo em massa em criar modelos de literatura para todas as idades, é claro que não é de hoje a mudança quase que completa da primeira versão para a versão atual da fábula de Chapeuzinho Vermelho mas, existem ainda, da mesma forma que a fábula de Chapeuzinho, encobertas por motivos que o consumo implica, algumas obras literárias ligadas a textos que hoje ostentam uma aura infantil e ingênua. Essas versões não são tão atuais, porém foram "escondidas" do grande público nas últimas décadas por motivos que as leis de consumo ditaram e ditam.
Essas leis surgem quando um possível mercado de consumo apresenta certas características como por exemplo: ser formado por um público alvo (crianças) que merece certos "cuidados" sempre estabelecidos por instituições como a religião, os valores sociais vigentes, o Estado e atualmente o mercado de consumo em massa, forçando destarte à marginalização dessa versão e de outras por motivos muito parecidos, criando então uma nova imagem do texto, que de certo ponto de vista pode ser considerado em muito distorcida de sua instância primeira. (O que quero levar em consideração aqui é o fato de que uma releitura transformou-se na obra em si, marginalizando a primeira e original forma do conto e alguns valores originais de sua simbologia.)
É certo que releituras são sempre interessantes e necessárias, mas o que causa um certo interesse aqui é que o conto em si desapareceu, dando lugar a um outro quase totalmente distinto do primeiro, basicamente infantil e perfeitamente encaixado aos valores do mercado de consumo atual. Esse fenômeno acontece também com outras histórias hoje consideradas exclusivamente infantis. As mil e Uma Noites por exemplo, antes de sofrer as mudanças que a tornaria uma história infantil, em alguns de seus contos segue uma linha muito próxima à literatura porno-erótica com trechos em que sobejam descrições detalhadas de relações sexuais.
A versão da fábula de Chapeuzinho Vermelho aqui referida remete à transição que uma adolescente vivência ao tornar-se mulher fértil e depois velha e infecunda novamente. Com sua virgindade perdida, mas ganhando sua fecundidade, Chapeuzinho Vermelho é a antítese da vovó. O personagem de Chapeuzinho refere-se à passagem da mulher adolescente à fecundidade da mulher madura, enquanto Vovó representa o final desse ciclo. Esta versão da fábula carrega uma gama de símbolos e sentidos que a leva, inevitavelmente, à comparação com o texto atual. Na versão atual há, velado no texto, algo próximo a essa simbologia, mas a forma com que ela aparece leva a crer que há a intenção de subjugar o primeiro texto em nome da inocência infantil adequando-o a valores diferentes. Isso exemplifica de maneira sutil o que o consumo em massa de hoje representa para algumas criações artísticas. É óbvio que essa mudança na fábula não é dos dias atuais. É, talvez, da Idade Média, quando os irmãos Grimm escreveram suas releituras de contos populares, mas representa quase cabalmente a relação existente hoje entre consumo e criação artística.
O lobo que aparece como símbolo da mudança, da libertinagem e do infernal na primeira versão do conto, apresenta-se na fábula atual apenas como o vilão necessário para que o Bem se manifeste no personagem do caçador, do homem viril, que adentra ao conto para tomar-lhe as rédeas e inserir-lhe o gosto da eterna luta entre opostos que tanto assistimos hoje nas grandes salas de cinema, com suas eternas variações sobre o mesmo e renitente tema, seja o vilão um programa de computador, ou seja um perverso mago intergaláctico que sonha em destruir o universo, é apresentada, sempre em formato de maravilhosa novidade!, a velha e conhecida luta entre Deus e o diabo, onde há sempre um vilão simplesmente maléfico. Adequou-se então o Lobo da primeira versão aos padrões atuais de criação/consumo, arrancando toda a sua libertinagem para torna-lo apenas mal e útil a obrigatória atuação do homem/deus dentro da conhecida fórmula de criação.
Perdem-se com esta nova medida velha de criação algumas preciosas discussões. Não há hoje tanto espaço para a discussão do sexo como acredito que deveria existir em uma sociedade que seu autodenomina avançada. Discutir nossa simbologia é importante para compreendermos os fatos sociais, a nossa situação em relação às instituições, os poderes que seguimos e os dogmas que carregamos. O formato simplista para o qual o consumo em massa empurra o processo de criação alicerça de uma forma negativa o debate dos nossos símbolos nos dias de hoje. A simbologia humana é complexa, recheada de nuances em seus formatos e rica em leituras. Já o consumo em massa, trabalha com produtos que possuem possíveis boas leituras, mas que tornam-se, à custa de suas repetições extenuantes, infinitamente mais pobres. Nas duas versões de Chapeuzinho Vermelho nota-se o contraste: na primeira versão há símbolos como o pão e o leite que Chapeuzinho carrega representando respectivamente o alimento essencial e a abundância/fertilidade ligados à imagem da mulher mítica que perpetua a espécie humana e que carrega consigo a vida gerada pelo sexo; já na versão atual, Chapeuzinho Vermelho encarna, antes de qualquer outra leitura, a donzela frágil e indefesa que só sobrevive pelo auxílio do homem/deus representado pelo caçador.
Há, também, os dois Lobos que ambos os textos apresentam: o da primeira versão é o personagem que transforma, é aquele que carrega a força do sexo que mudará a Chapeuzinho virgem para a Chapeuzinho mulher fértil. É o lobo quem dá a Chapeuzinho a ordem de atirar as vestes ao fogo, numa clara alusão a regeneração, Chapeuzinho ao atirar sua roupas ao fogo livra-se de todos os seus conceitos para readquiri-los novos, refeitos, preparando-a para sua nova forma, seu novo ciclo, ciclo este que mudará novamente com a chegada da velhice e a tornará infértil novamente (a imagem da infertilidade representada pela Vovó também sofre uma mudança, ou seja, dá seu último passo dentro da vida feminina quando o Lobo, no seu papel de personagem da mudança, a mata, selando o final do ciclo); já o Lobo da versão atual não demonstra esse papel objetivamente, o que ele significa de forma mais explicita é apenas a encarnação do mal. Na versão atual o Lobo não exerce mudança, pois o homem/deus salva a Vovó ao retira-la das entranhas do Lobo morto.
A versão atual ao matar o Lobo mata também toda a sua função transformadora, relegando-o apenas ao diabólico, e inserindo em seu lugar o inimigo perpétuo e necessário para a fórmula simplista do Bem contra o Mal, todo o resto fica implícito e transgredido.
O que a fábula atual produz como referência é a imagem do mítica do homem/deus que carrega consigo o poder da imortalidade ao destruir a mudança representada pelo Lobo. Aparece aqui, o grande medo do humamo: a morte. Quando o caçador retira a Vovó das entranhas do Lobo, ele demonstra, ao transgredi-lo, todo o medo do homem em encarar o final do seu ciclo de vida. É uma solução que não discuti o problema, apenas o marginaliza, tornando claro o medo do ser humano em encarar a morte como acontecimento irreversível e comum a todos. O papel do Lobo na primeira versão demonstra algo que nos é comum: a mudança. Ao destruir o Lobo que transforma e reapresenta-lo apenas na imagem do diabólico, perde-se toda a simbologia principal da fábula, pois ao final da primeira versão Chapeuzinho é devorada, concretiza-se então mais uma mudança com o surgimento da nova Chapeuzinho fértil e o fim da Chapeuzinho virgem. Toda esta simbologia é comum a todas as mulheres, e sendo assim, mais rica em leituras. A segunda versão por sua vez esconde esses símbolos, deixando apenas uma fuga rasa ao mundo real e cheio de mudanças que o Lobo carrega, e empurrando o leitor a um final fugidio e obscuro, onde tudo se resolve sob a intervenção divina do homem.
Há desde muito uma luta, vivida pelo ser humano, em entender seus ciclos de vida, neste caso as duas versões nos apontam dois caminhos diferentes: um baseado em nossas reais experiências e outro baseado em uma força superior à nossa, e superior às forças da vida e da natureza. A primeira versão pode ser julgada como mais aberta ao debate e às leituras; a segunda nos subjuga ao poder do homem/deus que está além da natureza e da vida. A primeira versão é mais próxima ao ser humano comum, mais real, mais honesta com os nossos conhecimentos; a segunda por sua vez é irreal, pertence a um outro mundo, outra "realidade", que é totalmente distante da realidade humana e muito parecida com o que assistimos hoje nas salas de cinema: superproduções repletas de efeitos especiais irreais, distantes da nossa vida, que remetem o olhar mais atento à percepção de uma fuga desesperada da realidade.
Não tenho a intenção de desclassificar esse tipo de criação artística comandada por regras de consumo que podemos ou não concordar. O que me interessa é que, ao invés disso, traga-se à tona a outra forma para o possível confronto. O que acontece hoje com o consumo em massa é exatamente o contrário, adota-se um formato único para produção cultural (a diversidade não é lá muito amiga do consumo em massa, ela é mais dada aos arquétipos como os da mesmice oca da luta do Bem contra o Mal, sem nem ao menos discuti-los) e empurra-se todos contra o muro intransponível dos produtos de consumo em massa. O interessante então seria disponibilizar, ao grande público, todas as versões e não apenas uma constante perpétua. Há hoje, com o advento da sociedade digital, o acesso a uma maior quantidade de versões e leituras de uma mesma obra, tornando mais visível a "Ditadura do Gosto" da qual somos vítimas. A diversidade cultural inexiste ao grande público atualmente. Hoje estamos todos a mercê das opções que o mercado cultural nos oferece, principalmente o cinematográfico, e, o que o mercado (principalmente o cinematográfico) nos oferece é basicamente uma fórmula gasta e repleta de falsas soluções.
Na primeira versão, há uma alusão a essa falsa moral quando o Gato julga a atitude de Chapeuzinho, ao beber o sangue e comer a carne da Vovó, como a de uma "menina perdida". O texto faz uma menção aos conceitos morais de uma certa parte da sociedade que o gato representa, e, que está inscrustada aos conceitos de criação da chamada indústria de entretenimento. O gato da primeira versão é um símbolo ligado ao poder, representando no texto certo conceitos sociais que sempre brotam do poder como: recriminar qualquer ação que vá contra os "bons costumes estabelecidos". O Gato da fábula incorpora estes "bons costumes estabelecidos" e julga Chapeuzinho como uma "menina perdida", censurando a chegada de sua fertilidade e a falta de pudor da sua entrega ao ciclo do sexo, pois Chapeuzinho adquire, ao beber o sangue e comer a carne da Vovó, o conhecimento da sua sexualidade ignorada até então, a sexualidade é transmitida pela carne e o sangue da mulher velha e infértil para o corpo da mulher jovem e fértil. Essa leitura é rejeitada por boa parte dos segmentos sociais da sexofóbica sociedade Judaico-Cristã, que abominam a descoberta feminina do sexo e que a repelem de maneira que Chapeuzinho torna-se a "menina perdida" logo após entregar-se ao Lobo libertino. Não é permitida então a descoberta do sexo fora dos preceitos religiosos do que é certo ou errado, a descoberta física do sexo não é assumida, acontece sempre obscuramente e não a olhos vistos como na fábula, o que leva o Gato fazer um juízo de valor de Chapeuzinho e dirigir-lhe tão duro argumento. Ora, se já nos tempos da França do século XVIII isso era visto com tal olhos, é fato então que não avançamos muito desde lá. O que ocorre hoje não difere em muito do que pensou aquele "gatinho do século XVIII", quando é dito por alguns segmentos sociais, como: a igreja.
O falso moralismo que o Gato carrega serve como bela metáfora dos conceitos atuais que o mercado de entretenimento estampa em sua carranca esculpida pelas mãos do poder. Um exemplo atual seria o desenho de Aladim feito pelos estúdios Disney. No desenho, Aladim cantarolava uma música onde era descrita a sua terra natal (Oriente Médio), e uma das descrições feitas era relacionada à índole árabe com algo mais ou menos assim: "Esta é a terra onde se cortam as orelhas e corre sangue nos rios". Não se assuste caro leitor. Afirmo-lhe que era algo bem próximo a isso que o ingênuo herói cantava em alto e bom tom, aliás tom, ou tons que depois transformam-se em lugar comum na música mundial também, que os nossos ouvidos o digam. Claro que algumas instituições foram contra a música e depois houve um certo reajuste da mesma, o que mostra o comportamento manco das tais indústrias de entretenimento. Pois então, passado o susto, lembro-lhe que o mercado de entretenimento sempre demonstrou seus interesses claramente, e seus interesses neste caso era demonstrar quão ruins são todos os árabes, os quais por mera obra do acaso estavam envolvidos em conflito com os EUA, deixando no meio de toda esta demonstração de afeto uma boa fatia da população mundial, atingida incessantemente pela divulgação em massa do tal desenho, numa clara demonstração de onde podemos chegar se seguirmos o cortejo do féretro com seu empolado cadáver que o consumo em massa produz.
Esse é um outro exemplo de como uma criação subjuga outra. Hoje, para as crianças que assistiram ao desenho, fica a lembrança de um adolescente (uma versão mais frágil do homem/deus citado acima, mas que não foge muito à velha receita) que suprimiu o menino da primeira versão da fábula, de uma macaco no lugar que a mãe de Aladim ocupava na primeira versão (suprimir a mãe de Aladim da primeira versão não deixa de ser uma metáfora muito interessante, ainda mais se ela é trocada por uma macaco) e tamém apagar com muito cuidado toda a sexualidade e beleza adulta descritas na princesa do primeiro conto, entre outras "pequenas" alterações.
O que é quase totalmente suprimido nestes casos é a possível missão impossível de compararmos as versões atuais com as versões antigas, ou melhor, desaparecem as versões e em seu lugar ficam outras mais "adequadas" ao mercado de consumo em massa.
Destarte o mecanismo de criação atual oferece às fábulas, a cultura e ao folclore de cada povo, nada mais que o limbo do descaso, tornando o que muitos meios de comunicação chamam de "ARTE" em um gigantesco lugar comum. A globalização dos fábulas é interessante, mas creio que deva existir uma preocupação com as suas matrizes, pois é nestas matrizes que estão incrustadas importantíssimas memórias culturais.
Fica então, para os interessados, uma leitura mais rica de nossas experiências nos contos de Darnton e de outros autores, pois, como ele, há outras fontes que sugerem uma outra visão deste mundo apresentado hoje em muitas de nossas fábulas, uma visão que se comparada as outras pode demonstrar coisas diferentes na sua simbologia. Clamo por mais diversidade para, ao invés seguir apenas pelo caminho das agulhas, conhecer também onde vai dar o dos alfinetes
Pam, pam.
- Entre, querida. - Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite. - Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: "menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!"
Então, o lobo disse: - Tire a roupa e deite-se na cama comigo. - Onde ponho meu avental? - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
Para cada peça de roupa corpete, saia, anágua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia: - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.
Quando a menina se deitou na cama, disse: - Ah, vovó! Como você é peluda! - É para me manter mais aquecida, querida. - Ah, vovó! Que ombros largos você tem! - É para carregar melhor a lenha, querida - Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas! - É para me coçar melhor, querida! - Ah, vovó! Que dentes grandes você tem! - É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou.
Pode até parecer estranha, mas esta é uma versão camponesa, que acredita-se ser a primeira versão da fábula Chapeuzinho Vermelho, da França do século XVIII, compilada em O Grande Massacre de Gatos (e Outros Episódios da História Cultural Francesa) de Robert Darnton. Mas o que esta fábula possui de estranho? É certo que essa versão carrega algo que a difere da versão mais conhecida e atual, mas não é só o que percebemos. Há hoje um grande interesse da sociedade de consumo em massa em criar modelos de literatura para todas as idades, é claro que não é de hoje a mudança quase que completa da primeira versão para a versão atual da fábula de Chapeuzinho Vermelho mas, existem ainda, da mesma forma que a fábula de Chapeuzinho, encobertas por motivos que o consumo implica, algumas obras literárias ligadas a textos que hoje ostentam uma aura infantil e ingênua. Essas versões não são tão atuais, porém foram "escondidas" do grande público nas últimas décadas por motivos que as leis de consumo ditaram e ditam.
Essas leis surgem quando um possível mercado de consumo apresenta certas características como por exemplo: ser formado por um público alvo (crianças) que merece certos "cuidados" sempre estabelecidos por instituições como a religião, os valores sociais vigentes, o Estado e atualmente o mercado de consumo em massa, forçando destarte à marginalização dessa versão e de outras por motivos muito parecidos, criando então uma nova imagem do texto, que de certo ponto de vista pode ser considerado em muito distorcida de sua instância primeira. (O que quero levar em consideração aqui é o fato de que uma releitura transformou-se na obra em si, marginalizando a primeira e original forma do conto e alguns valores originais de sua simbologia.)
É certo que releituras são sempre interessantes e necessárias, mas o que causa um certo interesse aqui é que o conto em si desapareceu, dando lugar a um outro quase totalmente distinto do primeiro, basicamente infantil e perfeitamente encaixado aos valores do mercado de consumo atual. Esse fenômeno acontece também com outras histórias hoje consideradas exclusivamente infantis. As mil e Uma Noites por exemplo, antes de sofrer as mudanças que a tornaria uma história infantil, em alguns de seus contos segue uma linha muito próxima à literatura porno-erótica com trechos em que sobejam descrições detalhadas de relações sexuais.
A versão da fábula de Chapeuzinho Vermelho aqui referida remete à transição que uma adolescente vivência ao tornar-se mulher fértil e depois velha e infecunda novamente. Com sua virgindade perdida, mas ganhando sua fecundidade, Chapeuzinho Vermelho é a antítese da vovó. O personagem de Chapeuzinho refere-se à passagem da mulher adolescente à fecundidade da mulher madura, enquanto Vovó representa o final desse ciclo. Esta versão da fábula carrega uma gama de símbolos e sentidos que a leva, inevitavelmente, à comparação com o texto atual. Na versão atual há, velado no texto, algo próximo a essa simbologia, mas a forma com que ela aparece leva a crer que há a intenção de subjugar o primeiro texto em nome da inocência infantil adequando-o a valores diferentes. Isso exemplifica de maneira sutil o que o consumo em massa de hoje representa para algumas criações artísticas. É óbvio que essa mudança na fábula não é dos dias atuais. É, talvez, da Idade Média, quando os irmãos Grimm escreveram suas releituras de contos populares, mas representa quase cabalmente a relação existente hoje entre consumo e criação artística.
O lobo que aparece como símbolo da mudança, da libertinagem e do infernal na primeira versão do conto, apresenta-se na fábula atual apenas como o vilão necessário para que o Bem se manifeste no personagem do caçador, do homem viril, que adentra ao conto para tomar-lhe as rédeas e inserir-lhe o gosto da eterna luta entre opostos que tanto assistimos hoje nas grandes salas de cinema, com suas eternas variações sobre o mesmo e renitente tema, seja o vilão um programa de computador, ou seja um perverso mago intergaláctico que sonha em destruir o universo, é apresentada, sempre em formato de maravilhosa novidade!, a velha e conhecida luta entre Deus e o diabo, onde há sempre um vilão simplesmente maléfico. Adequou-se então o Lobo da primeira versão aos padrões atuais de criação/consumo, arrancando toda a sua libertinagem para torna-lo apenas mal e útil a obrigatória atuação do homem/deus dentro da conhecida fórmula de criação.
Perdem-se com esta nova medida velha de criação algumas preciosas discussões. Não há hoje tanto espaço para a discussão do sexo como acredito que deveria existir em uma sociedade que seu autodenomina avançada. Discutir nossa simbologia é importante para compreendermos os fatos sociais, a nossa situação em relação às instituições, os poderes que seguimos e os dogmas que carregamos. O formato simplista para o qual o consumo em massa empurra o processo de criação alicerça de uma forma negativa o debate dos nossos símbolos nos dias de hoje. A simbologia humana é complexa, recheada de nuances em seus formatos e rica em leituras. Já o consumo em massa, trabalha com produtos que possuem possíveis boas leituras, mas que tornam-se, à custa de suas repetições extenuantes, infinitamente mais pobres. Nas duas versões de Chapeuzinho Vermelho nota-se o contraste: na primeira versão há símbolos como o pão e o leite que Chapeuzinho carrega representando respectivamente o alimento essencial e a abundância/fertilidade ligados à imagem da mulher mítica que perpetua a espécie humana e que carrega consigo a vida gerada pelo sexo; já na versão atual, Chapeuzinho Vermelho encarna, antes de qualquer outra leitura, a donzela frágil e indefesa que só sobrevive pelo auxílio do homem/deus representado pelo caçador.
Há, também, os dois Lobos que ambos os textos apresentam: o da primeira versão é o personagem que transforma, é aquele que carrega a força do sexo que mudará a Chapeuzinho virgem para a Chapeuzinho mulher fértil. É o lobo quem dá a Chapeuzinho a ordem de atirar as vestes ao fogo, numa clara alusão a regeneração, Chapeuzinho ao atirar sua roupas ao fogo livra-se de todos os seus conceitos para readquiri-los novos, refeitos, preparando-a para sua nova forma, seu novo ciclo, ciclo este que mudará novamente com a chegada da velhice e a tornará infértil novamente (a imagem da infertilidade representada pela Vovó também sofre uma mudança, ou seja, dá seu último passo dentro da vida feminina quando o Lobo, no seu papel de personagem da mudança, a mata, selando o final do ciclo); já o Lobo da versão atual não demonstra esse papel objetivamente, o que ele significa de forma mais explicita é apenas a encarnação do mal. Na versão atual o Lobo não exerce mudança, pois o homem/deus salva a Vovó ao retira-la das entranhas do Lobo morto.
A versão atual ao matar o Lobo mata também toda a sua função transformadora, relegando-o apenas ao diabólico, e inserindo em seu lugar o inimigo perpétuo e necessário para a fórmula simplista do Bem contra o Mal, todo o resto fica implícito e transgredido.
O que a fábula atual produz como referência é a imagem do mítica do homem/deus que carrega consigo o poder da imortalidade ao destruir a mudança representada pelo Lobo. Aparece aqui, o grande medo do humamo: a morte. Quando o caçador retira a Vovó das entranhas do Lobo, ele demonstra, ao transgredi-lo, todo o medo do homem em encarar o final do seu ciclo de vida. É uma solução que não discuti o problema, apenas o marginaliza, tornando claro o medo do ser humano em encarar a morte como acontecimento irreversível e comum a todos. O papel do Lobo na primeira versão demonstra algo que nos é comum: a mudança. Ao destruir o Lobo que transforma e reapresenta-lo apenas na imagem do diabólico, perde-se toda a simbologia principal da fábula, pois ao final da primeira versão Chapeuzinho é devorada, concretiza-se então mais uma mudança com o surgimento da nova Chapeuzinho fértil e o fim da Chapeuzinho virgem. Toda esta simbologia é comum a todas as mulheres, e sendo assim, mais rica em leituras. A segunda versão por sua vez esconde esses símbolos, deixando apenas uma fuga rasa ao mundo real e cheio de mudanças que o Lobo carrega, e empurrando o leitor a um final fugidio e obscuro, onde tudo se resolve sob a intervenção divina do homem.
Há desde muito uma luta, vivida pelo ser humano, em entender seus ciclos de vida, neste caso as duas versões nos apontam dois caminhos diferentes: um baseado em nossas reais experiências e outro baseado em uma força superior à nossa, e superior às forças da vida e da natureza. A primeira versão pode ser julgada como mais aberta ao debate e às leituras; a segunda nos subjuga ao poder do homem/deus que está além da natureza e da vida. A primeira versão é mais próxima ao ser humano comum, mais real, mais honesta com os nossos conhecimentos; a segunda por sua vez é irreal, pertence a um outro mundo, outra "realidade", que é totalmente distante da realidade humana e muito parecida com o que assistimos hoje nas salas de cinema: superproduções repletas de efeitos especiais irreais, distantes da nossa vida, que remetem o olhar mais atento à percepção de uma fuga desesperada da realidade.
Não tenho a intenção de desclassificar esse tipo de criação artística comandada por regras de consumo que podemos ou não concordar. O que me interessa é que, ao invés disso, traga-se à tona a outra forma para o possível confronto. O que acontece hoje com o consumo em massa é exatamente o contrário, adota-se um formato único para produção cultural (a diversidade não é lá muito amiga do consumo em massa, ela é mais dada aos arquétipos como os da mesmice oca da luta do Bem contra o Mal, sem nem ao menos discuti-los) e empurra-se todos contra o muro intransponível dos produtos de consumo em massa. O interessante então seria disponibilizar, ao grande público, todas as versões e não apenas uma constante perpétua. Há hoje, com o advento da sociedade digital, o acesso a uma maior quantidade de versões e leituras de uma mesma obra, tornando mais visível a "Ditadura do Gosto" da qual somos vítimas. A diversidade cultural inexiste ao grande público atualmente. Hoje estamos todos a mercê das opções que o mercado cultural nos oferece, principalmente o cinematográfico, e, o que o mercado (principalmente o cinematográfico) nos oferece é basicamente uma fórmula gasta e repleta de falsas soluções.
Na primeira versão, há uma alusão a essa falsa moral quando o Gato julga a atitude de Chapeuzinho, ao beber o sangue e comer a carne da Vovó, como a de uma "menina perdida". O texto faz uma menção aos conceitos morais de uma certa parte da sociedade que o gato representa, e, que está inscrustada aos conceitos de criação da chamada indústria de entretenimento. O gato da primeira versão é um símbolo ligado ao poder, representando no texto certo conceitos sociais que sempre brotam do poder como: recriminar qualquer ação que vá contra os "bons costumes estabelecidos". O Gato da fábula incorpora estes "bons costumes estabelecidos" e julga Chapeuzinho como uma "menina perdida", censurando a chegada de sua fertilidade e a falta de pudor da sua entrega ao ciclo do sexo, pois Chapeuzinho adquire, ao beber o sangue e comer a carne da Vovó, o conhecimento da sua sexualidade ignorada até então, a sexualidade é transmitida pela carne e o sangue da mulher velha e infértil para o corpo da mulher jovem e fértil. Essa leitura é rejeitada por boa parte dos segmentos sociais da sexofóbica sociedade Judaico-Cristã, que abominam a descoberta feminina do sexo e que a repelem de maneira que Chapeuzinho torna-se a "menina perdida" logo após entregar-se ao Lobo libertino. Não é permitida então a descoberta do sexo fora dos preceitos religiosos do que é certo ou errado, a descoberta física do sexo não é assumida, acontece sempre obscuramente e não a olhos vistos como na fábula, o que leva o Gato fazer um juízo de valor de Chapeuzinho e dirigir-lhe tão duro argumento. Ora, se já nos tempos da França do século XVIII isso era visto com tal olhos, é fato então que não avançamos muito desde lá. O que ocorre hoje não difere em muito do que pensou aquele "gatinho do século XVIII", quando é dito por alguns segmentos sociais, como: a igreja.
O falso moralismo que o Gato carrega serve como bela metáfora dos conceitos atuais que o mercado de entretenimento estampa em sua carranca esculpida pelas mãos do poder. Um exemplo atual seria o desenho de Aladim feito pelos estúdios Disney. No desenho, Aladim cantarolava uma música onde era descrita a sua terra natal (Oriente Médio), e uma das descrições feitas era relacionada à índole árabe com algo mais ou menos assim: "Esta é a terra onde se cortam as orelhas e corre sangue nos rios". Não se assuste caro leitor. Afirmo-lhe que era algo bem próximo a isso que o ingênuo herói cantava em alto e bom tom, aliás tom, ou tons que depois transformam-se em lugar comum na música mundial também, que os nossos ouvidos o digam. Claro que algumas instituições foram contra a música e depois houve um certo reajuste da mesma, o que mostra o comportamento manco das tais indústrias de entretenimento. Pois então, passado o susto, lembro-lhe que o mercado de entretenimento sempre demonstrou seus interesses claramente, e seus interesses neste caso era demonstrar quão ruins são todos os árabes, os quais por mera obra do acaso estavam envolvidos em conflito com os EUA, deixando no meio de toda esta demonstração de afeto uma boa fatia da população mundial, atingida incessantemente pela divulgação em massa do tal desenho, numa clara demonstração de onde podemos chegar se seguirmos o cortejo do féretro com seu empolado cadáver que o consumo em massa produz.
Esse é um outro exemplo de como uma criação subjuga outra. Hoje, para as crianças que assistiram ao desenho, fica a lembrança de um adolescente (uma versão mais frágil do homem/deus citado acima, mas que não foge muito à velha receita) que suprimiu o menino da primeira versão da fábula, de uma macaco no lugar que a mãe de Aladim ocupava na primeira versão (suprimir a mãe de Aladim da primeira versão não deixa de ser uma metáfora muito interessante, ainda mais se ela é trocada por uma macaco) e tamém apagar com muito cuidado toda a sexualidade e beleza adulta descritas na princesa do primeiro conto, entre outras "pequenas" alterações.
O que é quase totalmente suprimido nestes casos é a possível missão impossível de compararmos as versões atuais com as versões antigas, ou melhor, desaparecem as versões e em seu lugar ficam outras mais "adequadas" ao mercado de consumo em massa.
Destarte o mecanismo de criação atual oferece às fábulas, a cultura e ao folclore de cada povo, nada mais que o limbo do descaso, tornando o que muitos meios de comunicação chamam de "ARTE" em um gigantesco lugar comum. A globalização dos fábulas é interessante, mas creio que deva existir uma preocupação com as suas matrizes, pois é nestas matrizes que estão incrustadas importantíssimas memórias culturais.
Fica então, para os interessados, uma leitura mais rica de nossas experiências nos contos de Darnton e de outros autores, pois, como ele, há outras fontes que sugerem uma outra visão deste mundo apresentado hoje em muitas de nossas fábulas, uma visão que se comparada as outras pode demonstrar coisas diferentes na sua simbologia. Clamo por mais diversidade para, ao invés seguir apenas pelo caminho das agulhas, conhecer também onde vai dar o dos alfinetes
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